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Tomie Ohtake, 100 anos


Existe algo de magnético em efemérides que coincidem com dezenas completas. Talvez o simbolismo dos decênios, centenários e milênios decorra do fato de que manifestam uma temporalidade longeva, mais persistente que o corre-corre cotidiano. No caso de Tomie Ohtake - nascida em 1913, na cidade de Kyoto, no Japão -, novembro de 2013 representa, ao mesmo tempo, um marco e uma data qualquer, pois, enquanto recebe as devidas homenagens, a artista sustenta o trabalho rotineiro em seu ateliê, pinta e estuda as formas como sempre fez.

Em seu temperamento, Tomie combina o sentimento de urgência com a atitude serena. Sempre produziu sabendo que tinha começado a pintar relativamente tarde, aos 39 anos, depois de dedicar-se principalmente à família. Mas hoje nota também que já trabalha há muito tempo, e que as décadas tornaram difícil lembrar todos os detalhes. O fato é que nessa longa trajetória foi curto o intervalo entre as primeiras aulas com o pintor japonês Keiya Sugano durante um mês, em 1952, e sua primeira exposição individual no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), em 1957 - um dos vários atestados de sua rápida incorporação ao meio artístico.

No horizonte da arte brasileira da década de 1950, Tomie alimentava as explorações da forma abstrata, como faziam Waldemar Cordeiro e Willys de Castro. Entretanto, ao contrário desses exemplos ligados respectivamente ao concretismo e ao neoconcretismo, evitava filiar-se a grupos ou programas rígidos. Mais especificamente, a produção da artista era então associada à abstração informal - na qual as obras resultam do manuseio expressivo e espontâneo dos materiais da pintura, sem aludirem à representação de figuras ou aos esquemas geométricos. Mas também em relação a esse repertório Tomie preferia conviver sem comprometer-se.

O programa artístico de Tomie consiste - se for possível resumi-lo em poucas palavras - no jogo contínuo com um vocabulário de formas e cores que ao longo dos anos percorrem as diversas materialidades da tinta a óleo, da tinta acrílica, das serigrafias, litogravuras e gravuras em metal, além dos volumes em concreto e das chapas e tubos metálicos. Formas e cores usualmente associadas aos repertórios da pintura abstrata construtiva e do informalismo abstrato podem, na sua obra, convergir e contaminar-se mediante uma abordagem lúdica, cíclica e não dogmática.

Na narrativa mais consolidada acerca da arte brasileira, uma geração de artistas ativos no princípio da década de 1960 foi reconhecida por ter explodido os limites da arte rejeitando molduras, museus e toda delimitação que separasse o ato criador da vida real dos corpos e das ruas. No caso de Tomie, nunca foi necessário afastar-se da pintura para que se sentisse liberada dos seus paradigmas e delimitações; bastou dar vazão à pesquisa, deixando de lado tudo que lhe parecia artificial. Sobrou então uma dinâmica de constante redescoberta da forma abstrata, que se faz urgente pelas inúmeras possibilidades que pode encontrar, mas também relaxada pela certeza de que seu desenrolar não prevê a chegada a um ponto final ideal e estático. Sua obra - que, além da pintura, envolve gravura (serigrafia, litografia e gravura em metal), esculturas e muitas obras públicas -, já foi exposta em diversos museus e galerias no Brasil e no exterior, destacando-se em eventos como a Bienal de Veneza e a Bienal de São Paulo em várias edições.

Em mais uma demonstração de urgência e tranquilidade, Tomie abdica de intitular suas obras, dando ao espectador a oportunidade de encontrar por si mesmo quaisquer simbolismos. Isso não quer dizer que ela prescinda do direito de sugerir cosmologias - elas estão aí, muito claras na reiteração de certas formas e atmosferas, mas não aceitam restringir-se a um nome, a uma metáfora única.

E a vida dos corpos e das ruas, poderá ela ser alcançada? A artista aposta que sim, desde dentro da própria sinuosidade das formas e linhas que dançam no interior das imagens e lançam-se ao espaço em uma série de esculturas e volumes, como acontece desde a década de 1980 na coleção de obras públicas que Tomie instalou em várias partes do Brasil e também no Japão, país que deixou em 1936. Esse é o legado que deverá permanecer integrado à trama cotidiana da vida de nossas cidades.


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Apresentação